terça-feira, julho 12, 2005

 
ARTIGO DO PAULO BOTELHO: Depois de algum tempo sem dar notícias, segue o último artigo enviado pelo Paulo Augusto (Debanda):

A SINTAXE DA DECÊNCIA

Por Paulo Botelho

Eu chegara por volta das seis da tarde, ainda cedo, para começar o workshop de Higiene do Trabalho da Fundação São Camilo. Tratava-se de um dos temas do Programa de Pós-Graduação em Medicina Ocupacional direcionado a Médicos do Trabalho. Por problemas com minha agenda, a São Camilo adiara por duas vezes a sua realização. Insistiam em fazê-lo comigo. E lá cheguei, em Belo Horizonte, numa agradável quinta-feira de outono, em abril de 1997. O Programa de 20 horas-aula seria concluído no final da tarde do sábado. Ao entrar no saguão da sede da São Camilo, a recepcionista me avisa que tem um senhor à minha espera, sentado no sofá. Ele se levanta e vem ao meu encontro. Estatura mediana, magro e muito claro, sorriso afável; terno e gravata impecáveis, não aparentava os seus 73 anos de idade". Sou Marcos Noronha, professor na Fundação João Pinheiro e gostaria de participar de seu curso", apresentou-se. Concordei, de imediato. E ficamos por alí, conversando amenidades até o início da primeira aula que se estendeu até às onze da noite. Marcos Noronha, na verdade, não era apenas um professor como eu, mas o dirigente de uma das melhores instituições de ensino do país: a Fundação João Pinheiro.

Lembro-me que comecei minha aula, assim, sem aquelas apresentações de praxe: "São mais de 5.000 mortes e 28.000 incapacitados permanentes. Não é o saldo da Guerra Civil na Bósnia, mas o resultado de 428.100 acidentes de trabalho ocorridos em 1996 no Brasil, gerando custos da ordem de R$ 4 bilhões, de acordo com os dados do Ministério do Trabalho e Previdência Social".

Ao concluir o primeiro dia, Marcos ficou de levar os dados sobre Silicose da cidade de Itabira, onde trabalhara intensamente em programas de ação social. Os demais alunos ficaram de pensar sobre o assunto!
Na aula da sexta-feira, Marcos levou diversos casos de doenças ocupacionais ocorridos, também, em Itabira, a cidade natal do poeta Carlos Drummond de Andrade. Após a aula, ficamos ainda um bom tempo conversando na lanchonete daquela entidade.
Mas, foi no intervalo para o almoço do sábado é que fiquei conhecendo a dimensão da biografia de Marcos. E de sua decência.

Marcos Noronha nasceu em 1924 em Areado, perto de Guaxupé - Minas Gerais. Fez seus estudos normais em Guaxupé e estudou no Seminário de Belo Horizonte onde terminou os estudos em 1947, ano em que foi ordenado padre. Trabalhou até 1965 em Guaxupé. Identificado com o Método de Alfabetização Paulo Freire, sua preocupação foi sempre com a formação da juventude.
Em 1965 foi nomeado Bispo da Diocese de Itabira onde desenvolveu importante trabalho na renovação da Igreja Católica, de acordo com as decisões do Concílio Vaticano II. Marcos Noronha renunciou ao episcopado em 1970.
Em 1976 mudou-se para Belo Horizonte onde casou-se. De 1976 em diante, desempenhou importantes funções na área de educação continuada na mesma Fundação João Pinheiro.

Não precisei perguntar o porquê da renúncia como bispo. Já tínhamos nos tornado amigos. Marcos contou-me que na Semana Santa passava a maior parte do tempo nas paróquias de sua diocese. Falou de uma cena comovente na cidade de Santa Isabel, num Domingo de Ramos. Santa Isabel tem um povo simples e bom, espontâneo e acolhedor, distante do consumismo. Marcos dizia que o consumismo transforma as pessoas, costuma passar da mercadoria para o comportamento coletivo e acaba virando estado de espírito ou algo assim. Na véspera daquele domingo, o povo foi esperá-lo numa certa altura da estrada. Disse que levou um susto quando viu todo mundo de ramo na mão, cantando: "Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana nas alturas!" - "Quase chorei. Ser recebido como se eu fosse o próprio Senhor, era demais!"

Quando um empresário de Itabira convidou-o para benzer sua fábrica. Marcos respondeu: "Para que mais água benta? - A fábrica já está toda molhada com o suor dos operários!"

Foi numa reunião de dois dias do Movimento Operário, em 1970, em São Paulo. Junto com Marcos Noronha estava Dom Waldir Calheiros, Bispo de Volta Redonda. Marcos ficou com Dom Waldir hospedado em um convento de freiras; os dois em um quarto com dois beliches. Terminada a reunião, cada um voltou para a sua respectiva diocese.

Dois meses depois, Marcos foi chamado para participar da sagração do novo bispo na cidade de Três Corações, Minas. Quem vai presidir a sagração é o Núncio Apostólico Dom Umberto Mosconi, um cardeal italiano. Marcos explicou-me que o Núncio Apostólico é o representante do Papa em cada país. Sabendo que Marcos estava lá, como consagrante, chamou-o à Cúria, fechou a porta, ofereceu-lhe um cigarro e foi direto ao assunto: "Consta uma queixa na Secretaria de Estado do Vaticano e na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, segundo o qual V. Excia, no decorrer de uma reunião em São Paulo, dormiu com duas freiras e uma moça!"
Marcos disse que não se lembrou do que pensou na hora que esse raio percorreu seu corpo da cabeça aos pés; mas foi tentar dormir. No dia seguinte, dia da sagração do novo bispo, não conseguia fazer nada, a não ser seguir aquele ritual de forma automática.
Ao sair da igreja, dirigindo-se diretamente ao carro para voltar, o Núncio foi ao seu encontro e disse: "Hoje é outro dia, Dom Marcos, vamos colocar uma pedra em cima disso!" - E Marcos, então, resolveu que era mesmo um outro dia. Entrou no carro e partiu para sempre da Igreja. Foi para a casa de seus pais, em Guaxupé, e não mais deu satisfações à Secretaria de Estado do Vaticano e à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil!

No sábado, já à noite, sem que nada tivéssemos combinado, Marcos foi com o seu Fusca, até o Hotel onde me hospedara, para levar-me ao Aeroporto de Confins, de volta para São Paulo.

A sintaxe da decência implica em não deixar apagar as luzes de dentro. Algumas pessoas já nascem sem os fios ou sem o mecanismo dessa visão. Outros tantos, pelas condições de seu meio, vão perdendo a lucidez aos poucos. Mas, em cada anoitecer dorme sempre uma porção de luz. Marcos Noronha foi ao encontro da Luz Eterna em fevereiro de 1998!
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Paulo Augusto de Podestá Botelho é Professor e Consultor de Empresas para Programas de Engenharia da Qualidade, Antropologia Empresarial e Gestão Ambiental. Membro da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.